A roda já foi inventada


Maria Cristina Feijó Januzzi Ilário

Sistema Único de Saúde, SUS, vinte anos depois... Sim, a universalização, a descentralização, o controle social e o fortalecimento da gestão propõem, ao Brasil, o modelo teórico mais completo do mundo para o “Fazer Saúde”. Trazem o desafio da ruptura paradigmática da relação entre o papel do estado laico e a autonomia grandiloquente dos governos governados pelos partidos políticos e por e para si mesmos, para o alcance efetivo e sustentável das políticas públicas para a promoção, prevenção e assistência à saúde. Pra quem não sabe, há uma história aí!

A constituição em saúde brasileira se deu a partir da militância ferrenha e apaixonada do setor mais progressista, e minoritário, da saúde e da sociedade; a “fé” na universalidade, equidade, na participação e controle social, fez do Movimento da Reforma Sanitária o marco, da potência quase poética, contra os interesses escusos, privados e distorcidos das corporações e do mercado. Aqui, venceu o “homem” contra o capital.

São vinte anos de Sistema Único de Saúde (SUS) e, na verdade, vinte anos de resistência contra as investidas insidiosas e camufladas da vontade dura e organizada das indústrias farmacêuticas e das operadoras, físicas e jurídicas, de comércio lucrativo da doença. A nossa história também começa a partir deste marco. A história do encontro entre a potência de uma parcela minoritária da sociedade e da paixão de um punhado de sanitaristas pela Vida! Explico: enquanto nascia o SUS, o brado, a solidariedade, a coragem e a atitude do incipiente movimento gay no Brasil exigiram e iniciaram, junto ao estado, a construção de uma das melhores políticas públicas em defesa da vida.

Assim nasceu, no ventre do SUS, o Programa de DST/Aids do Estado de São Paulo e, logo a seguir, o Programa Nacional de DST/Aids; desde o primeiro sopro, fiéis aos princípios constitucionais da saúde: universalidade, equidade, integralidade e, efetivos, controle e participação social. Vinte anos depois, com a melhor resposta mundial ao enfrentamento da epidemia da aids, nos deparamos com os seguintes questionamentos e, pasmem, afirmações:..."O Programa de Aids deu certo porque é o primo rico", "Programa de Aids: A caixinha com recursos imexíveis que interfere na “autonomia” do gestor", "É uma política pública vertical que ignora as instâncias formais de pactuação", “Chegou a hora da aids se alinhar ao SUS”, etc., etc., e etc.

Me desculpem os amigos, mas que “!@*%?” (tenham a liberdade poética de imaginar o pior palavrão da modernidade) é esta?

A lição aprendida, comprovada cientificamente e no suor misturado dos saberes, mostra que a construção, a execução e a gestão compartilhada dos planos e metas programados e, necessariamente, a vinculação de recursos permitem: O empoderamento político das comunidades historicamente excluídas (como gays, lésbicas, travestis, transexuais, usuários de drogas, putas, putos, pobres) e promove a real democratização e responsabilização dos processos decisórios; Promove a SUStentabilidade de políticas de Estado, independente dos "ventos", "cores" e "humores" dos governos.

Mais: Transforma, em tempo real, a realidade epidemiológica objeto da ação! Envolve e trans”forma” unidades de carbono assalariadas produtoras de procedimentos de saúde, em GENTE que planeja, monitora, replaneja, intervém, sofre, chora, comemora, aprende e começa tudo de novo e tudo novo.

Gestores que gestam e parem (do verbo parir sem analgesia), se responsabilizam e superam limites jurídicos, burocráticos, de orçamento e execução financeira, prestação de contas e guilhotina (porquê nossos pescoços incomodantes têm uma atração fatal pelo fio da navalha de quem vive na teoria da reforma sanitária, e , talvez por uma miopia galopante, cada vez menos enxerga que a revolução do SUS já começou há muito nos quintais do império). Então, como e porquê o infeliz chavão: “incluir a agenda das DST/Aids na agenda da Atenção Básica e do SUS ”?. Não vêem que a atenção nos equipamentos do SUS nada têm de básica? Que a defesa da vida é mais do que complexa, e que de básico só tem a repetição pouco criativa dos discursos arcaicos de quem não viu a banda passar?

“Incluir a agenda da aids na agenda da atenção básica e do SUS” é uma frase nonsense, para não dizer redundantemente burra, (e, às vezes acho, perigosa)! Não vêem que nós, técnicos e PVHA, frentes parlamentares e sociedade civil organizada, já fizemos leis, (quase) quebramos patentes, construímos redes públicas de assistência e retaguarda laboratorial, produzimos genéricos, salvamos a vida dos outros e a nossa própria vida da impessoalidade ascética do 1,5 pessoas morrem por minuto de aids (enquanto a noas, as nobs, o pacto, continuam comemorando a vitória em celulose timbrada, e pactuando virtualmente o politicamente correto)?

Já negociamos, descentralizamos, recentralizamos, verticalizamos e horizontalizamos tudo e com todos, milhões de vezes, e mais um milhão de vezes faríamos o raio que o parta for necessário para a defesa da vida, da dignidade, da transparência, da probidade, dos direitos e da cidadania?

Porquê "um quarto de vida" pra nós é alguém inteiro e que tem nome! A roda já foi inventada! Nós

Somos o SUS que dá certo, vinte anos depois! Nós somos o SUS que planeja e busca financiamento, que negocia em todos os espaços formais e ascendentes e que transforma em verdade o que foi planejado, aprovado e pactuado. A celulose timbrada e assinada pelas autoridades comprova nossas ações nos arquivos de aço da máquina pública, mas, mais do que papel, nosso “fio do bigode” foi lançado e nos compromete a alma com o SUS que desejamos e acreditamos. É nossa a autonomia! É pública e laica, e, venhamos e convenhamos, que história é essa de conferir autonomia a gestores (pra eles gestor é só o secretário de saúde do prefeito da ocasião) que mudam a cada quatro anos ou quatro vezes por ano? A autonomia é do SUS local! É dos Conselhos de Saúde!

E, bem vindo seja, mesmo que só por quatro anos, aquele que falar a nossa língua; aquele que não tiver esse idioma no currículo, a gente põe pra fora, ou dependendo do tamanho da pistola política, a gente resiste e espera... Não podemos nos alinhar ao SUS!!! O SUS é bem maior e nos engloba, fascina e encanta, nos submete e nos alça nas alturas e depois nos atira de cara no chão frio da realidade desigual, e nos desafia a verdadeira revolução do fazer saúde de forma tão diferente, quanto necessário for para fazer entrar primeiro pela porta da frente, de cabeça erguida, toda a diversidade do NOSSO POVO ainda mais excluído depois do “advento” da aids.

Para mim, que estou coordenadora do Programa Municipal de DST/Aids de Campinas, o que preconiza o SUS é investir na gestão da Atenção Básica, assumindo a missão e a responsabilidade da formação e do matriciamento, garantindo a efetiva descentralização dos recursos, vinculando-os aos planos descentralizados das equipes da Atenção Básica. A política do incentivo é mais do que uma caixinha é uma grande oportunidade de legitimar o planejamento em saúde e o cumprimento das metas pactuadas!

Óbvio, que se é o que preconiza o SUS, já estamos fazendo isso e colhendo os frutos doces da missão no caminho certo. Desafios São muitos... Mas entre os maiores desafios estão a manutenção e ampliação das estratégias do planejamento horizontal e participativo e o desafio que é ACREDITAR EFETIVAMENTE na descentralização dos recursos como estratégia e pressuposto da sustentabilidade das políticas públicas e legitimação do SUS. Também é desafio fomentar, qualificar e fortalecer o Controle Social e, quiçá, reformar a 8666, onde o nosso SUS e a nossa vergonha na cara não cabem mais.

E pra não ficar no discursão, Campinas mata a cobra, mostra o pau e a cobra morta. O projeto Norô PositHIVa é a primeira experiência brasileira de descentralização com recursos vinculados (e com superação das metas pactuadas, como mais de cem mulheres fazendo fila em um Centro de Saúde pra num mesmo dia colher o teste de HIV e dar entrevista pra TV e incentivar outras mulheres do bairro a fazer o mesmo); Ou cinco "caixinhas" (Planos de Ações e Metas) que foram criadas em Campinas, por deliberação do Conselho Municipal de Saúde, nas Áreas programáticas da Saúde do Trabalhador, na Assistência Integral Domiciliar, na Vigilância em Saúde e Reabilitação. Pasmem! O gestor local (que geralmente muda de quatro em quatro anos ou quatro vezes no mesmo ano) não foi à falência, as equipes estão cumprindo suas metas e, pasmem mais ainda, o recurso parece triplicar quando é descentralizado.

Mais: O Centro de Referência do Programa DST/Aids de Campinas é uma equipe de verdade. O Conselho Municipal de Saúde tem compromisso de usuários e trabalhadores. Campinas e Jundiaí operam compromisso de rede regional, numa história de amor à vida, pacto pela saúde e respeito ao SUS, acima de qualquer suspeita. Aí, vem a hora do tomate: A quem pode interessar a desvinculação dos recursos Fundo a Fundo? De quem foi a idéia de que tudo tem que ser descentralizado para a Atenção Básica? De certo não foi da Atenção Básica, porquê ninguém pergunta para eles. A qual SUS a aids tem que se alinhar? Ao SUS do discursão politicamente correto e da prática arcaica e burocrática que não controlou a dengue, que não controlou a tuberculose, que não controlou a hanseníase ou, as demais áreas e práticas em saúde têm que se alinhar ao SUS no qual os Programas de Aids nasceram e se pautaram nesses vinte anos?

Relatório Ungass e a vergonha brasileira

Como empurrar vários "Brasis" para debaixo do tapete? "Descentralizando um pouco mais a Assistência?", ou vamos, a partir das evidências científicas, manter a nossa História de qualidade, criatividade, compromisso e absoluto respeito ao SUS?

Reflexões: Descentralização no campo das DSTs/aids é redundância. O que precisamos é ampliar a capacidade e a abrangência das ações de aconselhamento e diagnóstico, incluindo os outros níveis do sistema. Serviços de referência às DST/Aids são evidência científica da melhoria da qualidade de vida, queda da mortalidade e do princípio da hierarquização dos sistema de saúde (dá uma olhada no Qualiaids ...)

A Atenção Básica é imprescindível ao enfrentamento da epidemia da aids (mesmo que ela não saiba ainda); Vamos pactuar então as diferentes atribuições no sistema fora do papel e com a mão na massa? Construção de redes e intersetorialidade são do campo da responsabilidade compartilhada sobre as políticas públicas para a cidadania e para a equidade, se cada um fizer a sua parte e contribuir com a do outro. E não se todo mundo fizer tudo.

A participação de cada nível do sistema compromete em igual tamanho e valor o compromisso da qualidade “boca inteira” (não meia boca em nome do acesso) em função da integralidade, acesso e equidade. O SUS ainda nem começou em alguns rincões deste nosso imenso País...

É a nossa grande oportunidade, então, a partir das lições aprendidas, de começar direito! Vamos à luta pensar nas estratégias de ampliação do acesso a uma Assistência digna, de qualidade, para todos os brasileiros e os acolhidos pela nossa Pátria Mãe Gentil, que vivem com o HIV e nos têm ensinado a vivenciar o SUS. Somos capazes, tenho certeza, de criar estratégias para o acesso universal, com qualidade e complexidade necessários, adequadas às características regionais do nosso imenso, diverso e maravilhoso País!

Maria Cristina Feijó Januzzi Ilário é enfermeira sanitarista graduada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Programa Municipal de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) da Prefeitura de Campinas.